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Arrepender-se de ter nascido

"Você vai se arrepender do dia em que nasceu!", foi o que ele gritou encarando-me segundos antes de atacar-me. Neste exíguo lapso de tempo pude pensar mais uma vez sobre esta expressão. E novamente discordar. Como podemos nos arrepender de algo que não nos cabe decidir? Pois é, não decidimos nascer ou não, é involuntário, quando chega a hora a própria mãe, involuntariamente também, apenas seguindo a natureza, nos expele – eufemismo para expulsar.

Chegada a hora, é despejo, sem renovação de contrato. Fora! Não acha que se pudéssemos escolher não ficaríamos mais um pouco? Ou se tivéssemos consciência do que nos espera do lado de fora, não cometeríamos suicídio? Vai saber.

Então não tinha do que me arrepender, mas é uma expressão ameaçadora, plenamente entendível, é um prenúncio de um ato violento, de tal forma que nos faria desejar não ter nascido para sofrê-lo. E foi. Logo depois de dizê-la e, encarar-me por alguns segundos, enfurecido, ele partiu pra cima de mim, para golpear-me com a faca que empunhava na mão direita.

A raiva torna as pessoas cegas, impõe-lhes uma desvantagem. Eu só usei isso a meu favor, usei a investida dele para defender-me, em três simples atos: 1) esquiva; 2) um leve empurrão; e 3) pé direito esticado.

Foi simples, e ele teve sua própria força contra si. Tropeçou, desequilibrou-se e acabou cravando a faca no próprio peito. Aconteceu tudo tão rápido que eu percebi que as ideias em sua cabeça estavam demorando a se organizar. Sua expressão já não era mais de raiva, agora era de espanto, por não entender o que aconteceu.

Eu fiquei em pé, olhando para ele, dando-lhe um tempo para entender a cena, enquanto tinha seu olhar de piedade de volta, alternado entre meus olhos e o cabo da faca em seu peito. A lâmina tinha entrado pela metade, mas ele não tinha coragem de retirar. O sangue jorrava rápido, sua camisa branca surrada estava toda empapada, e suas mãos escorregavam de tão sujas de vermelho.

Antes de abaixar-me ao seu lado, vi seu olhar mudar, era um nítido olhar de arrependimento. Coloquei minha mão esquerda sobre seu ombro, a direita sobre suas mãos que seguravam o cabo da faca, e sussurrei em seu ouvido:

― Eu sei que você está arrependido, vá com Deus – com o peso do meu corpo terminei de empurrar o cabo até seu peito – pai.


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