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Até o ponto final

Nós nunca imaginamos chegar aos cento e três anos. Eu digo nós porque, eu e ela, por coincidência do destino, nascemos no mesmo dia. Mas os nossos caminhos só se cruzaram aos vinte e três anos. Foi na minha festa de aniversário, uma amiga em comum a levou, pois justamente naquele dia ela estava triste, sentindo-se sozinha, sem ter com quem comemorar seu nascimento.

A nossa amiga não só nos colocou no mesmo lugar, como no momento de cantarmos "parabéns" e soprar as velinhas, fez a denúncia "você sabia que ela também faz aniversário hoje?" – apontando para a amiga –, eu adorei aquilo, então a chamei para soprarmos as velinhas juntos. Demorou menos de um segundo para seu rosto ruborizar, o que só confirmou sua timidez, que já estava clara por ela escolher ficar atrás de todos que se posicionaram para o momento do bolo. Ela queria ficar ali, anônima no escuro, enquanto toda a atenção se voltava pra mim, o aniversariante iluminado pelas duas velas de formato dois e três sobre o bolo. Porém, no comentário da amiga, todos se voltaram para trás, abrindo caminho para que a tímida moça virasse o centro das atenções.

Ela se negou a vir ao meu lado, cobria seu rosto com as mãos, mas eu não permiti aquilo, fui e a busquei pelas mãos, que já estavam geladas e úmidas. Eu sussurrei em seu ouvido "não se preocupe, nós vamos dividir a atenção agora, meus parabéns".

Nós sopramos as velinhas juntos. E foi juntos mesmo, abaixamos as cabeças ao mesmo tempo, conectados com nosso olhar, que só se desviou quando inflamos os pulmões e apagamos as velas. Estávamos tão próximos que eu pude sentir seu hálito fresco e doce, um sabor experimentado cerca de um mês depois, quando nos beijamos pela primeira vez. O sabor de seu beijo nunca mais saiu da minha boca.

Acho que foi ali, soprando as velas, que eu me apaixonei por ela. Nunca toquei nesse assunto, jamais a questionei qual foi seu pedido ao cortar o bolo, mas o meu revelo aqui, oitenta anos depois, eu pedi que me fosse permitido passar o resto dos meus dias com ela e, se possível, toda a eternidade. Pelo que parece, o pedido tem sido atendido.

Após assumirmos nossa paixão, começamos a namorar. Três anos depois, éramos noivos, e com um ano de noivado nos casamos. Sempre tivemos a certeza de que um era para o outro, e que duas vidas seriam dali em diante uma única, que não haveria mais dois caminhos, mas apenas um, trilhado por dois corações.

Tudo foi acontecendo de forma muito natural. Aprendemos rápido a lidar um com o outro, nos comunicávamos apenas com o olhar. Sabíamos de cor nossos desejos, defeitos e virtudes, e tudo era bom, aprendemos a nos amar por completo, sem reservas.

O tempo seguiu naturalmente, vieram os filhos, os netos e bisnetos. Vieram decepções, alegrias, surpresas. Nós vivemos tudo que a vida tinha para nos oferecer, com várias fases que se alternavam com cadência própria. Algumas se repetiam, outras foram únicas, positivas ou negativas. Tudo fez parte de nossa vida, tudo foi único a nós dois, pois sempre estivemos um do lado do outro.

Hoje estamos aqui, com cento e três anos, um do lado do outro como sempre foi, cada qual em seu leito. Enquanto seguro sua mão, sinto o calor esvaindo, eu sei que ela já se foi. Não estou triste, pois entendo que não pôde me esperar, mas também entendo que foi uma gentileza dela, e que ela já prepara o caminho para minha chegada, eu também vou, não demorarei. Ela sabe que eu só preciso terminar estas linhas.

Nós vamos juntos, como ao mundo viemos e vivemos. No mesmo dia. Um dia depois do outro. Deixamos um legado, raízes e princípios. Deixamos o exemplo da força do amor. Quando verdadeiro, não perece ao tempo. É além dele.

Estamos indo felizes, satisfeitos com a vida que tivemos, sem qualquer reclamação ou arrependimento.

Termino aqui este texto porque preciso ir, minha amada me espera. Mas não é o fim. É só um recomeço, um novo parágrafo depois do ponto final.


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