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Vamos complicar? Tem certeza?

Vivemos em sociedade, e nela precisamos interagir uns com os outros. Nesta interação, um dos fatores primordiais é a comunicação. Precisamos nos comunicar para ir e vir, manifestar nossos sentimentos, nossa opinião, etc. Para isso utilizamos códigos convencionados, que variam de acordo com a cultura de cada país. Estou me referindo à linguagem, seja ela escrita, falada ou gestual, e que serve de elo entre o emissor e o receptor, construindo a comunicação. Ou seja, a função da linguagem é a transmissão de uma mensagem em que se objetiva algo.

A qualidade desta comunicação depende da qualidade do emissor em expressar-se bem e traduzir em códigos corretos aquilo que anseia transmitir, por outro lado, o receptor também precisa de qualidade para decodificar aquele código e assim estabelecer a comunicação plena.

Toda esta introdução foi com o escopo de apontar o quão importante é a comunicação no cotidiano. Precisamos dela das tarefas mais simples às mais complexas. Porém, sinto que nas mais simples e cotidianas a tarefa essencial de comunicação está bastante complicada. O que estaria acontecendo? São os reflexos do descaso público com a educação? Estamos formando uma sociedade de analfabetos funcionais? Um analfabeto funcional é o indivíduo que sabe ler no limite da decodificação das palavras, mas não consegue interpretá-las ou aplicá-las num contexto. Porquanto, lê-se, mas não se entende o que lê.

Um parente meu, educador, já havia levantado esta questão num livro publicado, “Singrando nos mares da leitura”, de que as escolas não estavam trabalhando a leitura, e quando a trabalhavam não exploravam a interpretação dos textos, apenas ensinavam a decodificação das palavras. Já se era aventado no ano de sua publicação (2005) um problema crônico no ensino, em que não se investia em bibliotecas escolares, sendo que em muitas escolas o espaço que deveria ser destinado para isso, acabava como depósito, ou qualquer outra coisa, muito longe de um ambiente de incentivo à leitura, totalmente desfocado do aspecto cultural-educacional.

Pois bem, pode ser sim esta uma das justificativas do baixo nível de capacidade de comunicação social. Se não se aprende a ler, mas apenas decodificar palavras, não se aprende a raciocinar, a entender o que se diz ou se ouve. Aprende-se sim uma comunicação empírica, em que se assimila a fala sem pensar, ou concatenar as ideias. Vamos ilustrar um pouco tudo isso e enfim justificar esta crônica. Alguns fatos vividos ou conhecidos chamam-me a atenção para este problema de comunicação em sociedade.

Na época da faculdade, um professor nos contou um caso, uma situação por ele vivenciada e geradora da mesma indignação – problema de comunicação social. E isso ocorreu lá pelos anos 2000. Certa vez ele estava em um Shopping Center, em São Paulo, e entrou numa loja em busca de um determinado produto, de uma marca específica. Após procurar bastante, pediu auxílio ao vendedor e foi por este informado que aquele produto não se encontrava disponível em estoque. Pois bem, meu Professor então perguntou se não teria na loja algum produto equivalente, para ele levar no lugar do qual ele procurava. O vendedor olhou pra ele, coçou a cabeça, repetiu a si mesmo “equivalente?”, meu professor respondeu que sim, levaria um produto equivalente se o que ele procurava não estava disponível à venda, e o vendedor respondeu: “Não, não temos, a loja não trabalha com esta marca, equivalente, só da outra mesmo”.

Leitor desavisado, equivalente não é marca, pelo menos não conheço nenhum produto desta marca, é segundo o dicionário “o que tem o mesmo valor, igual, mesmo peso, etc”. Será que meu professor exagerou? Poderia ter sido ele mais coloquial? Talvez sim. Mas ao estudarmos um dos objetivos é evoluirmos, e com o passar dos anos nosso vocabulário muda, ele aumenta, e certas palavras tornam-se habituais em nossa comunicação. Equivalente, similar, semelhante, etc., deveria fazer parte do vocabulário daquele vendedor, afinal, a loja em questão não era uma qualquer, era de grife, e seu vendedor tinha um vocabulário pobre.

Tudo bem, alguns estudiosos dizem que a função da língua é a comunicação, e que devemos nos esforçar para tal, sempre respeitando o limite ou condição alheia. Principalmente, que é muito deselegante e nada educado corrigir as pessoas quando cometem erros durante a fala. Se ouvir alguém dizer “bem que poderia ter menas gente chata no mundo”, a menos que tenha um grau de intimidade muito grande com esta pessoa, e tato na abordagem, respire fundo e siga adiante. Deixa pra lá que será menos constrangedor.

E quando na comunicação o receptor desconfia que você não quis dizer exatamente o que você disse, e então procura certificar-se, mesmo quando você é extremamente claro na comunicação? Isso acontece por nivelação intelectual baixa e por paradigmas sociais.

O “Windows”, sistema operacional da Microsoft, tornou-se bastante popular, e ele nivelava seus usuários por baixo. Digo que nivelava, e não nivela mais, porque até o “Windows XP” ao dar-se o comando de desligar, ele te perguntava se tinha certeza que queria mesmo desligar o computador. Que desconfiança era essa na minha capacidade ou vontade? Se eu levei o cursor até o Iniciar, Desligar e cliquei, eu queria sim desligar. Ou será que o sistema estava se comportando quando como visitamos alguém e ao dizermos “vou embora” a pessoa retruca “mas já?”. Duvido. Do “Windows 7” em diante o sistema já confia mais na sua decisão, basta dar o comando ele obedece, sem questionamento. Ele confia na sua capacidade de decidir o que quer fazer. Foi um avanço na comunicação. O homem deve gerir a máquina, não o contrário.

Eu tenho passado por situações desconfortáveis ante alguns paradigmas sociais, sempre na utilização de serviços de consumo gastronômico.

Chego ao restaurante, leio o cardápio e peço uma bebida sem gelo. Isso deveria indicar algo extremamente simples, mas não está mais trazendo simplicidade. Houve uma época em que este comando era um diferencial banal entre uma bebida em temperatura baixa por estar conservada em geladeira e uma bebida com temperatura ambiente armazenada fora da geladeira. Atualmente, convencionou-se que toda bebida vem com pedras de gelo no copo, além de já estar na geladeira. Então, ou eu peço “por favor, bebida tal, fora da geladeira” ou tenho que ouvir do garçom “sem gelo no copo, senhor?”.

Até aí tudo bem, são variações aceitáveis. Mas o que aconteceu com o café? O nosso velho, puro e simples cafezinho. Em vários estabelecimentos passei pela mesma situação. Sento-me, peço um café e ouço “com leite ou sem?”, o que mostra a dúvida cruel de quem me atende, ou o “com leite?”, surge numa complementação segura e sútil de um provável esquecimento ou desatenção minha ao meu pedido. Mas o pior é quando não perguntam e chega à minha mesa uma xícara de café com leite! Quando foi que mudou o cafezinho que eu não soube? Era tão simples, pedia-se um café e ele vinha integral, incólume, puro. Hoje não se serve mais a versão solo, obrigatoriamente traz o acompanhamento leite. Por quê?

Eu me nego ao que foi trazido e peço para trocar, explico que o café era puro, e tenho que aturar bufadas e caras feias, como se o erro fosse meu. No mínimo quem me atende deve pensar “se era puro, por que não disse antes?”, mas eu disse! Eu falei “por favor, um café”. O que aconteceu com a comunicação? Ou desde quando o padrão agora é café com leite? Não seria normal se minha vontade fosse um café adicionado de leite eu emitir o código linguístico falado “um café com leite, por favor”?

Outra situação que ajuda a ilustrar isso foi num restaurante, ao pedir sobremesa. No cardápio estavam elencados os comandos, ou códigos linguísticos a serem emitidos de acordo com o meu desejo gustativo: Sobremesa de chocolate, sobremesa de chocolate com confetes, sobremesa de chocolate branco e sobremesa de chocolate branco com confetes. Tudo muito claro. Tomei minha decisão e comuniquei ao garçom, “por favor, uma sobremesa de chocolate”, ele me questionou “branco ou preto?”, eu já contrariado “chocolate... preto”, ele “com confetes?”, eu já me segurando “sem confetes... uma sobremesa de chocolate preto, SEM confetes!”, enfatizando.

Por que ele duvidou do que eu queria? Deveria eu ter sido mais paciente, e interpretar apenas como um excesso de zelo do garçom, para não errar no pedido? Mas se errasse, eu teria culpa? Qual? Segui o cardápio, que sugeria um código de comunicação. Não deveria haver isso, este hiato comunicativo.

Tenho percebido que é cultural no Brasil. As coisas aqui não seguem uma objetividade. Por isso talvez seja tudo atrasado, demorado, de má qualidade. Nada na verdade é o que se acha que é. Não se tem certeza de nada, há um abismo na comunicação social, e isso se reflete em tudo.

O lema é: se pode complicar, por que facilitar? Mesmo que inconsciente e por incapacidade cognitiva.


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