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A vida alheia

Esta crônica foi escolhida no I Concurso de Crônicas da Academia Bragantina de Letras, em 2014. Ela intrega a antologia acima, publicada em 2015.

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Existe algo mais interessante que a vida alheia? Deveria, ao menos. Mesmo que você se negue admitir cuidar da vida alheia, sempre tem algo nesse sentido que lhe chamará atenção. De onde vem isso? Por que somos tão curiosos? Já pensei que faz parte da natureza humana, mas que natureza estranha não? Muitas vezes esse interesse nasce de uma tentativa até inconsciente em saber com quem estamos lidando, uma espécie de autopreservação. Precisamos conhecer a pessoa com quem convivemos, nos relacionamos ou dividimos qualquer espaço.

Um dia desses encontrei um vizinho no elevador. A mesma conversa de sempre, aquele papo típico que você puxa só pra não ficar aquele silêncio eloquente nos intermináveis andares até o térreo. Ainda se fosse a vizinha do andar de cima, que usa um perfume delicioso, com notas amadeiradas, do tipo que você inspira ainda com mais força e segura por mais tempo para expirar, só para ficar inebriado, vá lá, valeria alguns minutos de conversa, mas aquele barbudo, barrigudo, que sempre faz uns barulhos estranhos ao respirar, como se fosse ter um treco. Ninguém quer dividir um espaço tão pequeno, sem janelas, que a qualquer momento pode travar num dos andares, com um tipo desses. E se ele tiver um treco mesmo, justo nessa hora, eu faria o que, preso com ele no elevador? Pois é, complicado mesmo.

O problema foi que ao invés de ele ter dado apenas continuidade ao “papo de elevador”, me perguntou se eu poderia dar dica de algum bom vinho, que não fosse muito caro, para harmonizar com uma lasanha que faria no domingo, para receber convidados. Eu fiquei curioso, perguntei o porquê de ele confiar numa indicação minha, afinal, nunca tivemos qualquer afinidade. Ele me respondeu que havia percebido minha predileção por vinhos, pois constatou que ao menos duas vezes por semana eu descartava garrafas de vinho no lixo. Que absurdo! O que ele tem a ver com meu lixo, quantas garrafas de vinho eu tomo ou deixo de tomar por dia, semana ou mês? Lembrei-me até daquela crônica do Veríssimo, “O Lixo”. Era a vida imitando a arte.

Respondi com paciência para não arrumar confusão, logo olhando para cima, para os intervalos dos andares, cujos números vão se acendendo e apagando conforme o elevador se movimenta. Só conseguia pensar “que absurdo, será que esse cara fuça no meu lixo?”. Pensei nisso porque algumas pessoas têm tendência a isso. Fuçam o lixo alheio apenas para conhecer os hábitos dos vizinhos. Cada hábito!

Fico pensando, não importa seja você ou não uma pessoa pública, algum interesse em alguém ira despertar. Mas como é chato quando o interesse é só para ter o que fofocar, como quase sempre acontece em condomínio. Será que se alguém encontrar no lixo do vizinho, várias caixas de remédios, ele vai bater na porta do doente para oferecer ajuda? Provavelmente não. No máximo vai render algum comentário do tipo: “o morador do apartamento “x” não vai durar muito tempo, toma tanto remédio, alguma coisa ele aprontou”. O negativo sempre é mais atraente.

A vida alheia desperta interesses. Não adianta. Fosse o contrário não daria audiência a esses “realities shows”, revistas de fofoca e manchetes sensacionalistas. Hoje, na internet isso é mais agressivo. A cada clique, mesmo que a notícia seja um factoide, se ganha uma contraprestação financeira, então não há limites para sensacionalismo e falta de conteúdo. Eu não me aguento quando leio algo do tipo “fulano passeia com o cachorro no Leblon”, rio com ironia “nossa, que falta de assunto!”. Por que uma nota dessa ganha destaque? Pelo interesse à vida alheia. Saber da vida dos outros, mesmo que coisas fúteis, sem qualquer aplicação prática, ou finalidade cotidiana, de alguma forma faz bem, seja lá pra quem, por isso vende, existe e se perpetua, porque desperta interesse.

Esse interesse muitas vezes ganha uma conotação mórbida. As redes sociais estão infestadas de imagens que qualquer desavisado de estômago fraco é pego de surpresa. Quando viu, já foi. Imagem registrada na mente, pronto, já se foi o dia. Aquilo irá persegui-lo o dia todo.

Portanto, a vida alheia é um prato cheio ao entretenimento. Seja o simples acompanhar da vida cotidiana de alguém, ou alguém em situação deplorável num eventual acidente. Sempre vai despertar a curiosidade alheia. Ainda bem que eu não sou assim. E você?


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